domingo, agosto 02, 2009

O tempo passa para todo mundo

Às quartas-feiras, a jam-session regular de bandoneon e violão, que resulta em tangos, na fina-flor da canção francesa e em um ou outro chorinho (e até El Condor Pasa) em simpático boteco na Cidade Baixa, atrai boemiozinhos intelectualoides, jornalistas, publicitários, amigos do dono do bar (que no fim das contas, é o que todo mundo se torna depois de um tempo) ou qualquer outra pessoa atraída pelos petiscos apetitosos e a cerveja gelada. Até por Roberto Carlos que, rejuvenescido nas paredes, nos diz que é proibido fumar antes das 23h. Todos respeitamos.
Nessa quarta-feira última, senhora distinta, vestida de preto em roupas casuais, oclinhos tartaruga, queria lugar no meio do tango. As atendentes lamentaram, não havia (mesmo em dia de jogo e sem dispor de televisão, o boteco vive cheio) posto no interior do bar. Por isso, a senhora disse em alto e bom som: "então eu vou para outro bar!" E saiu porta afora.
Aliás, notamos que havia senhoras solitas em um número de três, no bar: uma, mais jovem, parecia esperar alguém que não veio, ao cabo de nossa estada ali; outra, de mais de 60 anos, uma touquinha azul, vibrava com cada acorde dos tangos, sorria aos outros frequentadores, puxava papo, tomava a cervejinha; outra ainda, de uns 40 e poucos, jaqueta de couro e cabelo escovinha bem vermelho, tomava uma cerveja no balco e ouvia o tango maravilhada, sempre sorrindo e fazendo comentários com os convivas.
Mas minha amiga, sentada de frente para a porta, me chamou a atenção: "olha lá". Do lado de fora, a senhora de preto, encarangada de frio, esperava que vagasse uma mesa no interior do bar e no interior do som. Quando houve mesa, ela entrou e se instalou bem próxima ao epicentro da música linda. Na sua cara, uma invariável carranca era a impressão de um estado de espírito amargurado, solitário e que talvez dissesse: "eu sou assim e vocês não têm nada a ver com isso".
Tango após tango e a senhora não mudava a cara. Veio o sanduíche de queijo, rúcula e tomate seco, uma Bohemia long-neck e as feições eram as mesmas. Ela olhava para os lados, carrancuda, molhando o pão no azeite do prato, mastigando e afrontando, com uma sobrancelha levantada, quem cruzava olhares com ela: "eu sou assim e vocês não se metam na minha vida", dizia com os olhos verdes. Ela mastigava como se o sanduíche fosse de jiló.
Até que o duo tangueiro mudou o repertório e atacou com "Carinhoso". Todos os carinhosos, irmanados, se puseram a cantar. Minha amiga se empolgou e fez coro com voz empostada.
E lá, sozinha na mesa, a garrafinha long-neck vazia, a velha de preto não emitia voz mas movia os lábios, que diziam: "Vem, vem, vem, vem... vem sentir o calor dos lábios meus à procura dos teus. Vem matar essa paixão que me devora o coração! E só assim, então, serei feliz. Bem feliz!"

2 comentários:

Cris Moreira disse...

Ah, eu já fui nesse simpático bar, com ótimas companhias!

Beijoca

Joelma Terto disse...

Eu cantava alto e vibrava também porque uma daquelas velhinhas, bem ali, era eu. Ou eu era elas. Ou serei. Ou. Eu.

Ok.