Uma mancha escura congênita, que passeia em um braço, que se esconde na culpa, que pula para os ombros, que morre em uma testa; um esgasgo na garganta da infância, que se tranforma, na idade adulta, ora em um aleijamento moral condicionado, ora em uma tristeza que não conhece a si própria. Tudo transmitido, como numa brincadeira de passa-anel, de geração a geração em uma família que sobrevive em meio a heranças truncadas.
Essa história que, embora conduzida por um fio de ares judaicos, é universal como as manifestações da maldade, está no livro "Marcas de Nascença", que a autora canadense Nancy Houston poderia ter narrado de uma maneira, digamos, "épica", como sói às lembranças de guerra que atravessam gerações. Mas, em vez de entrecortar o enredo com lembranças grandiosas de bombas, migrações e separações - que até estão lá, mas não da forma usual -, ela estrutura o livro em quatro partes, pela narração, em primeira pessoa, de quatro diferentes crianças de seis anos: Sol, o pequeno semi-deus, em 2004; Randall, seu futuro pai, apaixonado pela avó e uma sensível criança arrebatada pela beleza do mundo, em 1982; Sadie, mãe de Randall, uma criança azarada e esmagada pela frieza da avó e a frivolidade apaixonante de sua mãe, nos anos 60 e, finalmente, nos anos 40, a pequena Kristina, em constante e involuntária mutação, que aprende, um dia, a cantar sem palavras e cuja influência permanece da primeira à última página do livro.
Não dá para dizer muito, senão estraga. Mas só o ponto de vista daquelas crianças, que as vemos primeiro adultas, com exceção do pequeno Sol (o que, por si só, já é assustador ao nos fazer pensar que tipo de adulto ele se tornará), ajuda-nos a mastigar um pouco de nossas próprias trajetórias, examinando para descobrir quanto do que somos agora se deve ao que fomos no passado.
E "herança" é inevitável: por mais que dela se fuja, é a marca de nascença invisível das histórias que perigosamente negamos no fundo de nós.
3 comentários:
Adoro frases enormes e legíveis, como as suas.
Dei de natal pra minha mãe. Eu não sei se ela entendeu a metáfora. Talvez em algum lugar lá dentro. Bem lá dentro, lá, onde nem ela alcança.
Lendo teu post eu chorei de novo, como chorei no final do livro. Daí, naquele momento, eu fui ler de trás pra diante, como naquele filme amnésia. O que me fez comprar o livro foi uma frase sobre ele que dizia que "Um adulto nada mais é do que uma criança que sofreu". Tu descreve com exatidão os apaixonantes personagens, Liv. E eu fico com a imagem clara do Randall desenhando pessoas sem braços, sem troncos, sem...
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