segunda-feira, outubro 20, 2003

Eu adoro o meu bairro. Daqui da janela do meu quarto de dormir (lateral, de fato) eu consigo ver duas grandes árvores que têm lá os seus 100 anos. Estão no quintal de uma casa que não é mais vivenda de ninguém, virou um samba do crioulo doido, com um escritório de advocacia, uma bicicletaria e nos fundos, o cafofo de um bando de motoboys barulhentos. Mas as árvores lá estão. E no topo daquele telhado ainda há uma chaminé que dá para a cozinha, devidamente tapada desde que eu só era uma guriazinha que ia brincar com a filha do vizinho.
Já a casa da dona Maria e do seu Manuel (nem preciso dizer de que país eles vieram), mais perto da minha janela, tinha um quintal com uma pequenina horta e uma edícula onde vivia o filho louco deles, primo de um falecido prefeito daqui, o mesmo que introduzira gatos nos jardins da praia, pra não ter de gastar dinheiro com veneno pra rato. Sempre achei que a loucura não era só do primo mais novo do prefeito, quase tão empreendedor quanto este. Certo dia, com uma hélice de ventilador e um desses abanadores japoneses, ele fez um cata-vento que foi fincado no alto, bem no meio da horta. Minha diversão sublime da pré-adolescência era olhar dentro dos olhos do louco, o máximo de tempo possível. Era sempre ele que perdia a paciência, agitando um pano na minha direção, tomado de ira, gritando: "rááá! rááá!". Num dia qualquer, perdido na irrelevância dos barulhos da avenida movimentada, eles se mudaram e o quintal foi cimentado, a casa reformada, e quando meu computador enguiça, é pra lá que eu o levo no colo, para que os garotos da loja de informática dêem um jeitinho que o faça funcionar melhor. A única vida que povoa o cimento do quintal (às vezes com montinhos de cocô, hélas) é a da Nina, uma cadela vira-lata com uma cara de velhinho frágil, uma orelha sempre alerta, a outra sempre caída, que sempre late nas horas noturnas em que ouve o bater deste teclado.
O que será que pensam eles todos dessa minha janela, que há anos guarda uma menina sonhadora que, hoje mulher, olha o hoje e o ontem atrás de uma moldura cuja persiana quebrou há alguns dias?

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