quarta-feira, julho 23, 2008

A frustração do quase

O must dos meus 20 anos foi a França, que me deu minha festa móvel, como a tanta gente, e lembranças românticas que fizeram de mim praticamente uma francesa extraviada. Ironicamente, uma das coisas francesas mais queridas pra mim é, na verdade, inglesa: um par de botas Dr.Martens (que me fazem pular de um a seis na graduação do relatório Kinsey) azul-marinhas que comprei quando estive no país dos Gauleses. De couro e uma sola de borracha resistente até a ácido, a Dr.Martens é a bota dos grandes nomes do rock n' roll, do movimento punk e outras agremiações sociais mais polêmicas. De posse dos meus pisantes, eu andei por Paris e Amsterdam, eu vivi todos os anos da faculdade e até depois. Elas dormiram ao relento, do lado de fora de uma barraca. E o solado se gastou até quase furar (pois ela não fura) e o couro ficou puído, gasto e descascado.
Comprar, um dia, um novo par de Dr.Martens, seria pra mim como renovar a carteirinha da saudade, da vivência especial que tive nesses dez anos.
Então o dia de hoje chegou. E, logo depois do trabalho, na minha passada quase que diária no Mercado Público de Porto Alegre, eu as vi em um estande de brechó. Novas, negras, lustrosas, as solas intactas. Quanto? R$ 15! Era miragem, mentira? Elas custam por volta de US$ 100. Só dois pares. Um deles, de 3 1/2 (numeração britânica para calçados). O outro, 4, exatamente o meu número. Calcei o pé esquerdo. Serviu, mas a Dr. Martens é o tipo da bota que tem de ser amaciada (eu tive calos horríveis nos primeiros dias. Depois, passou e elas se tornaram realmente minhas), disso eu sabia. Fui calçar o pé direito e não entrava: descobri, para minha enorme decepção, que o número dessa remanescente era 3 1/2 como as outras. E era o último par do brechó, do tipo não renovável, pois não há essas botas no Brasil. Que remédio?
Saí do mercado com um ar totalmente desalentado, e fui pegar meu ônibus de sempre. Mas ele não passava e acabei tomando outra linha que também passa perto de casa. Aqui em Porto Alegre, existem os "Poemas no ônibus", cartazes colados no interior dos coletivos com poesias de diversas autorias, inclusive de poetas ainda desconhecidos. Foi justamente de um deles, Anderson Santos, que eu li o que precisava ler:

A memória é um Midas
Transforma em agora
Todo passado que toca.

E me dei conta que minhas botas são o passado. Por muito tempo, eu acalentei a nostalgia de revivê-lo do jeito que eu sou agora. E isso é impossível. Meu passado não cabe mais em mim porque agora eu sou outra, assim como as botas que não entram mais nos meus pés. Eu posso gastar cem dólares e comprá-las no tamanho certo. Mas não posso reviver o que já foi.
Ir adiante demanda coragem e sofrimento. Mas da evolução ninguém deve escapar, e isso é um regozijo para a alma.

6 comentários:

Anônimo disse...

Eita crônica maravilhosa.

O artigo na Paradoxo está um primor. Superorgulhosa de você, mana! :D

Joelma Terto disse...

tuas botas Dr.Martens me deixaram assim, nem que tu: toda nostálgica...
:*

Anônimo disse...

Gostei de ler isso. Soa muito como o jeito que tenho sentido os dias nessa que sou agora.

Anônimo disse...

Lívia, querida amiga...

Definitivamente saudade e nostalgia são marcas indeléveis das almas sensíveis, dentre as quais, definitivamente, você se inclui.

O mais interessante é notar que essa característica se reflete, invariavelmente, em nossas escolhas mais importantes. O que trazemos conosco, os que temos por perto, os que queremos para o futuro.

Pudera - à despeito das falácias libertárias, somos seres sociais, filhos de nosso tempo e espaço. E ainda que isso não determine nosso futuro, nosso passado diz muito sobre nós.

Como você descrevera de forma belíssima: "tudo o que me é de mais caro cabe dentro de uma lata".

E mesmo sabendo que olhar para trás é sempre revisitar o passado com "os óculos da nostalgia adulta", reencontrar a juventude na maturidade não é memorialismo tolo, mas sim unir as duas pontas de uma existência singular.
Ademais, a nostalgia é deliciosamente sinestésica, e rescrudesce nossas perceções sobre outrora em proporções delirantes.

Já diria o mestre Fernando Pessoa:

"
...
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
...
"

Beijo Grande!

L.C.

Anônimo disse...

We'll meet again,
Don't know where,
Don't know when;
But I know we'll meet again some sunny day;
Keep smiling through,
just like you always do,
till the blue skies drive the dark clouds far away

Ricardo disse...

Passado a gente não "bota" fora fácil. Mais il faut...