quarta-feira, abril 19, 2006

Delirium at 37,2º C

Dizem que à tarde é comum a temperatura do corpo aumentar um pouco e nos conferir uma espécie de febre leve.
Essa febre amena que me acometeu me fez, no entanto, delirar, pois vi na rua uma mulher toda curvada, de abrigo de ginástica, cruzando o meu caminho e se preparando para atravessar a rua. Ela não era corcunda. Simplesmente andava como se estivesse abaixada e, pela sua expressão perdida eu percebi que a coluna era torta por causa do peso dos seus dias. O peso dos dias dessa mulher é uma pedra imponente que ela carrega no cangote. Uma única pedra que contém as confusões de sua vida, todas ligadas sem discriminação de tamanho ou intensidade. Na adolescência, ela tomara as dores da mãe por o irmão tê-la maltratado; a cunhada tomara as dores do irmão porque este tinha mágoas contra a mãe; todos tomaram as dores do pai, porque a mãe o traíra; anos mais tarde, ela foi embora porque achava que só podia confiar em si mesma. Agora, o alfinete que lhe espeta por acidente, o copo que se quebra ao lavar a louça, a chefe que lhe dirige impropérios lhe causam uma dor que é uma só. É a dor de achar que tudo é culpa de tudo e o bolo do café da tarde desanda e encrua porque o marido de olhou feio no café da manhã. E tudo é o pesado monolito sem forma que lhe esmigalha os ossos.
Do grosso pedregulho, porém, espera-se que Michelângelo faça surgir a forma da sua estátua mais bela.

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